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mas eu sabia, é verdade que eu sabia, q havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados
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a nossa diferença fundamental é q você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo
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você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme q me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para q você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo q você precisava de muito espaço (...)
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Sabe, eu me perguntava até q ponto você era aquilo q eu via em você ou apenas aquilo q eu queria ver em você, eu queria saber até q ponto você não era apenas uma projeção daquilo q eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas q me fascinavam e q no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava q amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido (...)
(Caio Fernando Abreu em "Para uma Avenca Partindo", L&PM Editores, 2005)
